Quando se fala de Louis Pasteur, imediatamente lembramos da enorme contribuição que este cientista do século XIX fez para a vida moderna. Atualmente, quase todo o leite consumido no país é pasteurizado, um termo que homenageia a técnica por ele desenvolvida em 1865. Pasteur, ao observar o processo de fermentação do vinho e sua conversão em vinagre, descobriu, através da ajuda de um microscópio, que certos alimentos e líquidos estragavam devido à ação de micro-organismos. Ele percebeu que, ao aquecer o vinho a aproximadamente 55°C, era possível evitar a deterioração sem alterar o sabor, e que o vinagre não surgia “naturalmente”, mas era produto desses “organismos invisíveis”.

Contudo, é importante reconhecer que a transição de uma descoberta científica para sua aplicação prática não é imediata. Se a adoção das descobertas de Pasteur tivesse sido mais rápida, inúmeras vidas poderiam ter sido salvas. Hoje o leite, tão associado à saúde e ao bem-estar, já foi um dos principais agentes de doenças e uma das principais causas da mortalidade infantil nos EUA. Em meados do Séc. XIX, a taxa de mortalidade infantil na cidade de Nova Iorque chegava a 50%. Essas mudanças nas condições de criação do gado repercutiram diretamente na qualidade do leite produzido. Embora se tenha barateado o produto para a população mais carente, passou a ser vetor de doenças, inclusive da varíola (Johnson, 2021).

Um personagem menos conhecido na história teve um papel relevante na introdução do leite pasteurizado para a população. Nathan Strauss imigrou da Alemanha com sua família para o sul dos EUA em 1848 e teve uma vida muito difícil, quase reduzida à miséria com a guerra de civil americana. Foi então que se mudou com a família para Manhatan e começou trabalhando numa loja de utensílios de louças e vidros do pai. Com o tempo, prosperou.

Influenciado provavelmente pela perda de dois filhos para a varíola, Strauss se tornou ativo na luta contra a mortalidade infantil em sua cidade. Ele estabeleceu laboratórios para implementar a pasteurização do leite em grande escala, abriu depósitos e começou a vender leite a preço de custo em áreas de baixa renda. Em 1894, o New York Times noticiou essa iniciativa sob o título “Leite Puro para os Pobres”. Strauss também investiu em uma usina de leite pasteurizado na Ilha Randall depois de descobrir a alta taxa de mortalidade infantil em um orfanato local. A introdução dessa política resultou em uma queda imediata e significativa nas taxas de mortalidade infantil (Idem, p. 155).

Motivado por esses resultados, Strauss decidiu levar a questão ao campo político, buscando proibir o leite não pasteurizado em todo país. Essa iniciativa enfrentou forte oposição da indústria leiteira. Além disso, ele teve que lidar com a resistência de parte da população, que temia que a pasteurização removesse os nutrientes do leite, enquanto outros sustentavam que seu sabor não era igual ao leite fresco. Essas preocupações da população, naturalmente, eram amplamente apoiadas e estimuladas pela indústria leiteira.

A história do leite nos ensina uma lição valiosa. Avanços biotecnológicos precisam de agentes, de recursos financeiros e de políticas públicas para que, de fato, possam traduzir-se em benefícios concretos para a população. É preciso que os avanços científicos deixem de ser promessas e se tornem ações concretas.

O papel das políticas públicas na consolidação de inovações biotecnológicas é multifacetado. Elas devem garantir financiamento adequado para pesquisa e desenvolvimento, estabelecer marcos regulatórios que assegurem a segurança e eficácia das novas terapias, e promover o acesso equitativo a tratamentos inovadores. Além disso, é crucial que as políticas públicas promovam a educação e o diálogo com a sociedade para superar desafios éticos, culturais e sociais associados à biotecnologia.

Mudamos agora o foco de nossa narrativa, dando um salto para os tempos atuais. Hoje, uma das maiores promessas da biomedicina está depositada nas terapias gênicas. As abordagens inovadoras desenvolvidas por essas terapias permitem avançar em novos horizontes da biomedicina; como a manipulação direta do genoma para corrigir ou compensar anomalias genéticas: como a anemia falciforme; a hemofilia tipo B; a atrofia muscular espinhal; adrenoleucodistrofia; dentre outros.

Desde a inovação da técnica de edição genética CRISPR-Cas9 por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier em 2012, testemunhamos um progresso notável no campo das terapias gênicas. Essa abordagem pioneira proporcionou a base para o desenvolvimento de terapias avançadas com potencial expressivo contra enfermidades severamente incapacitantes, anteriormente vistas como incuráveis. Um exemplo emblemático é o caso de Victoria Grey, uma paciente com anemia falciforme que, após ser submetida a um tratamento experimental com CRISPR em 2021, experienciou uma remissão total dos sintomas associados à sua condição desde então (Stein, 2021).

No entanto, ainda há casos como o do menino Enrico, de 5 anos, diagnosticado com distrofia muscular de Duchenne, que chamaram a atenção e mobilizaram várias personalidades notáveis, incluindo Zico, Tony Ramos e Rogério Flausino, entre outros. Essas personalidades uniram forças em uma campanha nas redes sociais visando arrecadar fundos para o tratamento de Enrico com o medicamento Elevidys, cujo custo é de aproximadamente 3,5 milhões de dólares — cerca de 15 milhões de reais (Soares, 2024).

Dessa notícia se destaca a importância da solidariedade, paralelamente à disparidade de acesso a tecnologias médicas para salvar. A existência de tratamentos capazes de salvar vidas, que, no entanto, ficam fora do alcance daqueles incapazes de arcar com os custos, reflete uma profunda injustiça social. Essa realidade ressalta a urgência de desenvolver políticas públicas mais efetivas e iniciativas que expandam o acesso a tratamentos médicos avançados. A inacessibilidade de tratamentos avançados para indivíduos sem recursos financeiros sublinha uma grave injustiça social, enfatizando a necessidade urgente de políticas públicas e ações que ampliem o acesso a cuidados médicos. Torna-se essencial assegurar a disponibilidade de inovações terapêuticas para todos, visando uma distribuição mais justa dos benefícios médicos, conforme estabelece a Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável: “Atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”.[1]

Juntamente com o Elevidys, o Zynteglo, terapia gênica para desordens de sangue como a beta telassemia e a anemia falciforme, que é o caso de Victoria Grey, por sua vez, tem um preço aproximado de 2,8 milhões de dólares. A questão do acesso à saúde surge ao questionarmos a razão de tais tratamentos possuírem valores tão elevados. Diferentemente da produção de medicamentos convencionais, estes são produzidos em biorreatores de capacidade limitada, em um processo quase artesanal. Entretanto, Tedesco (2023) alerta que mesmo com a possibilidade de automatização desses processos, não há garantia de que os custos se tornem acessíveis à população em geral. Além disso, os custos dos tratamentos incluem o cálculo do QALY (Quality-Adjusted Life Year), que busca mensurar a qualidade e a quantidade de vida ganhas com o tratamento. Esta análise de custo também considera a economia gerada pela eliminação da necessidade de tratamentos alternativos (Tedesco, 2023). Levanta-se, portanto, a questão: qual seria o custo de um tratamento convencional para uma doença até então incurável? Esse valor é incorporado ao preço do medicamento, o que evidencia a significativa disparidade que o custo implica. Desta forma, a ciência enfrenta o desafio de transformar a promessa de cura e melhoria na qualidade de vida em uma realidade acessível, e não apenas uma utopia.

Van Rensselaer Potter, responsável por lançar as bases iniciais do campo que hoje chamamos de bioética, já na década de 1970, anteviu o avanço que a engenharia genética seria capaz de produzir, observando que alguns vírus poderiam ser utilizados como possíveis vetores para modificar a sequência de genes (Cf. Potter, 2016, p. 169). No caso, muitos desses medicamentos, e até vacinas, utilizam essa técnica.  Contudo, para além de sua atenção ao campo da biologia molecular, Potter questionava qual deveria ser o papel da biologia e da biomedicina para o futuro da humanidade. Nesse sentido, ele observa que dois marcos são fundamentais para um mundo melhor: que a ciência se volte aos avanços significativos para o bem-estar de populações e não apenas de indivíduos isolados (idem, p. 170). Em segundo lugar, se deve sobre a existência de tratamentos eficazes para combater doenças graves e se estes estão sendo amplamente aplicados.

A angústia expressa por Potter reflete a mesma mobilização observada nas redes sociais em prol do tratamento do menino Enrico. Trata-se do dilema entre o progresso científico e a realidade econômica e social que limita o acesso às inovações capazes de salvar vidas. Nessa intersecção, a ciência encontra-se subjugada aos custos de produção, transformando a esperança em uma quimera e a vida em um sofrimento perante os caminhos de salvação que se mostram inacessíveis.

Além das contribuições de Pasteur, Doudna e Charpentier, precisamos de visionários como Nathan Strauss, capazes de converter descobertas científicas em políticas públicas que beneficiem toda a população. A trajetória da pasteurização e o desenvolvimento da tecnologia CRISPR-Cas9 sublinham que a ciência, isoladamente, não é suficiente para traduzir avanços em benefícios tangíveis para a sociedade. Portanto, a interação entre ciência, sociedade e política é crucial para assegurar que os avanços biotecnológicos alcancem plenamente seu potencial de beneficiar aqueles que necessitam.

Referências

JOHNSON, Steven. Longevidade – uma breve história de como e por que vivemos mais. Tradução de Claudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. Tradução de Diego Carlos Zanella. São Paulo: Loyola, 2016.

SOARES, Lucas. Zico, Tony Ramos, Rogério Flausino: famosos se unem para tentar salvar garoto que precisa de remédio de R$ 15 milhões em MG. Portal G1. 25 de janeiro de 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2024/01/25/zico-tony-ramos-rogerio-flausino-famosos-se-unem-para-tentar-salvar-garoto-que-precisa-de-remedio-de-r-15-milhoes-em-mg.ghtml. Acesso em 9 de março de 2024.

STEIN, Rob. First sickle cell patient treated with CRISPR gene-editing still thriving. NPR. Disponível em: https://www.npr.org/sections/health-shots/2021/12/31/1067400512/first-sickle-cell-patient-treated-with-crispr-gene-editing-still-thriving. Acesso em 10 de março de 2024.

TEDESCO, Laura. Is $3.5 Million a Fair Price for a Lifesaving Gene Therapy? Medscape. 16 de fevereiro de 2023. Disponível em https://www.medscape.com/s/viewarticle/988371. Acesso em 9 de março de 2024

[1] AGENDA 2030, disponível no site da ONU no Brasil: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs, item 3.8.

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